O Brasil é uma democracia constitucional, o que faz com que por aqui não tenhamos poderes ilimitados, todos estão submetidos à Constituição, ela é soberana. Mas o próprio texto constitucional também conferiu ao Supremo Tribunal Federal o poder dizer sobre a constitucionalidade das leis produzidas pelo Congresso Nacional. Por isso, por vezes, pode parecer que exista uma sobreposição entre os poderes da República, causando a impressão de que há exorbitação das competências pelo Judiciário, gerando, para muitos, uma suposta ideia de juristocracia[1], em que juízes não eleitos governam através de suas decisões sobre a constitucionalidade ou não das leis produzidas pelo Parlamento – que por ser eleito, em tese, possuiria mais legitimidade.

Mas quem assim pensa, se olvida que tripartir o poder para ter um Judiciário técnico, contramajoritário e não eleito, para o ato de julgar os jurisdicionados – além de ser uma prerrogativa concedida pelo Constituinte Originário ao STF -, foi um avanço civilizatório e uma garantia do nosso Estado Democrático de Direito. Dentre as funções do constitucionalismo, além de racionalizar o poder e ser antagonista ao poder desenfreado, está sopesar e fazer o equilíbrio constante entre majoritarismo e contramajoritarismo. Respectivamente entre a legitimidade popular majoritária com os representantes eleitos e as instituições podendo atuar pautadas unicamente pelo direito, sem paixões e não adstritas ao sufrágio popular direto.

Por isso, o Poder Judiciário é uma instância vinculada somente à Constituição Federal, mesmo que cumpri-la desagrade grande parte ou até mesmo o todo. As instituições da República servem justamente para frear e pôr limites, não só às autoridades investidas mas também a maioria da população. Para que o Brasil seja uma democracia constitucional plena e protetiva de direitos e garantias fundamentais, é indispensável que o Supremo não ouça o povo e que o povo jamais seja supremo. Daí a importância de se ter as instâncias majoritária e contramajoritária segregadas, agindo de forma independente para fazer o balanço democrático, cada vez mais conflituoso e heterogêneo.

Outro ponto a se considerar e que afasta a narrativa de submissão do Legislativo ao Judiciário, é que o Parlamento pode pautar e julgar o impeachment dos Ministros da Corte. O que por si só já é um contrapeso fortíssimo dado a si – não havendo como se falar, portanto, em suposta ditadura da toga como se tenta fazer calhar por muitos. Basta ver também que é a própria política quem judicializa os grandes temas do debate nacional. Sem mencionar ainda o extenso rol de legitimados para demandar o Supremo, todas as autoridades com foro por prerrogativa de função, os inúmeros assuntos constitucionais que são de sua competência e a demanda residual por ser um tribunal de alçada.

O Tribunal, portanto, somente se pronuncia quando é provocado. Foi a Constituição quem legitimou inúmeras autoridades e entidades para a propositura de ações constitucionais com acesso direto ao Supremo, por isso há uma judicialização excessiva[2]. O STF é provocado a se manifestar sobre os temas, não o faz como revés para combater a vontade da maioria encampada pelo Parlamento. O que de fato poderia se discutir é a mudança de escopo da Corte, para não ser mais uma instância recursal, mas eminentemente um Tribunal Constitucional[3], fazendo apenas o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.

Mas isso significa dizer que o Tribunal possui legitimidade política para concorrer com o Congresso Nacional? É evidente que não. A legitimidade democrática é dos representantes políticos eleitos, e isso sequer se discute. Por outro lado, a legitimação das decisões do Judiciário advém da Constituição Federal e da sua aplicação. O papel do Supremo é contrapor e frear o poder absoluto dos representantes políticos eleitos – remontando a importância dos conceitos de majoritarismo e contramajoritarismo em uma democracia constitucional. Por vezes, os poderes são tratados de maneira idêntica, quando na verdade cada instituição possui um papel distinto dentro da democracia. O Executivo e Legislativo são poderes majoritários por essência, vence quem tem maioria eleitoral. Na medida em que o Judiciário possui uma função vital contramajoritária, sendo o freio dos demais.

Quando se fala em democracia defensiva, é preciso ter em mente que o regime democrático corre riscos, e por isso as instituições devem ter mecanismos para se precaver. Lembremos que a democracia é o único modelo que suporta eleger aqueles que mesmo depois de eleitos passam a agredi-la. A perspectiva do regime democrático da Constituição de Weimar (1919), por exemplo, ilustra o paradoxo em que a tirania do partido nacional socialista se impôs, onde o tirano surgiu através do processo democrático. Por isso, há a contradição da democracia em possibilitar aos seus opositores os meios para a destruírem.[4]

Surgem, portanto, os questionamentos de quais atitudes se deve ter diante dos intolerantes que não aceitam a própria democracia e se valem dela para serem eleitos e no momento seguinte garrotea-la? Pode a democracia admitir que os mecanismos que a definem, conduzam a sua própria destruição? Cabe a ela recusar a liberdade e tolerância, que lhe são elementos básicos, para os que não a aceitam?[5]

A questão é que se a democracia se define pelo pluralismo e a livre disputa entre a adesão dos cidadãos a um dado programa de estruturação da sociedade, impedir que idéias autoritárias opostas ao ideário democrático sejam objeto de deliberação popular, seria anti-democrático em si mesmo, e negaria a própria essência da democracia. Por isso, a participação nos espaços públicos daqueles que apregoam pautas anti-democráticas e se deixam seduzir pelo canto das sereias do autoritarismo, deve ser repelida[6]. E houve a adesão por parte de inúmeras constituições democráticas nesse sentido, em razão da inquietação quanto à possibilidade de se abolir a democracia e consequentemente substituí-la pelo seu oposto autoritário.[7]

Com a Lei Fundamental de Bonn (1949), surge também a proibição explícita de que partidos com ideários abertamente autoritários fossem admitidos no cenário político. Os postulados de que a democracia deve se prevenir contra os intolerantes, de que a constituição democrática não pode ser um pacto suicida e de que todo o regime tem o direito de se defender, foram incorporados em várias ordens jurídicas mundo afora. A ameaça de instauração de um regime totalitário inspirou medidas normativas de defesa contra a admissão dos partidos intolerantes, inclusive na Constituição Federal de 1988, que submete a criação de partidos à condição de que aquiesçam aos primados da soberania nacional, do regime democrático e do respeito aos direitos fundamentais[8] – traços típicos da democracia defensiva incorporada ao direito constitucional.

Sabe-se que as ameaças aptas a corromper o modelo democrático atuam de forma progressiva, sendo que as investidas não levam mais a derrocadas abruptas, mas produzem uma erosão paulatina do tecido democrático. E essas ameaças podem ser sintetizadas com a expressão do populismo, que se caracteriza por dividir a sociedade de um modo maniqueísta, entre o povo puro e verdadeiro, que é enganado e não compreendido, e as elites dirigentes, intrinsecamente espúrias e corrompidas, somente em vista dos seus próprios interesses e dos amigos do Rei.

No Brasil, é possível notar tais incursões para a tentativa de corrosão das instituições, e isso se dá em razão de que, críticas institucionais – sadias às instituições de Estado – foram paulatinamente sendo degeneradas e culminando na transformação do Supremo Tribunal Federal em inimigo ficcional da população, por não ouvir ou agradar a voz das ruas. Parcela da população, manipulada por certos grupos políticos, repudia o Tribunal e o enquadra bradando que o “Supremo é o povo” – frase de origem histórica pouco republicana.[9]

A frase de cunho notadamente populista, traz consigo o emprego estratégico da palavra “povo”. A retórica sobre definir quem de fato o é ou invocá-lo contra as instituições de Estado ganhou força no cenário político brasileiro, em que se fala em nome do povo visando retaliar o Poder Judiciário – atualmente com a proposta de emenda à constituição para instituir mandato aos Ministros do Supremo.

É claro que o STF é suscetível a críticas e reformas, a cizânia somente se coloca quanto a legitimidade de um poder fazê-lo por estrita pressão e reprimenda ao outro poder – porque determinada decisão, técnica frise-se-, não agradou certa parcela da população. E mesmo que essa parcela fosse a maioria, isso é um claro elemento de degeneração constitucional, vez que é notório que a pauta levantada pelo Parlamento é uma represália ao Judiciário, por ele ter cumprido a sua função precípua. E isso se deve mais pelos acertos do que pelos erros do Tribunal, que cumpre a sua missão dentro da função contramajoritária que lhe foi conferida no ordenamento constitucional.

Um dos poderes avocar para si a figura abstrata do povo e utilizar-se dessa retórica para ser o procurador tácito dos seus interesses – que jamais serão homogêneos em uma democracia – deve ser classificado como discurso demagogo e anti-liberal. Isso pois, se vale de uma alegação essencialmente moralista e contra as instituições de Estado, no sentido de proteger os bons e combater o mal. Se assemelha a retórica utilizada na época da degeneração com o nacional socialismo, na medida em que apregoa a divisão entre o bem e o mal, obstando o diálogo e cessando o compromisso democráico para soluções conjuntas entre os divergentes.

Essa é a narrativa típica do populismo, que se nutre com pautas de apelo emotivo e vocifera contra os direitos inalienáveis das minorias, pois oferecem, na sua concepção, uma resistência inaceitável à vontade e aos interesses da maioria. O lema do populismo é que ninguém tem direito de recusar a vontade do povo, e nessa visão, o supremo é o povo – que é definido de maneira oportunista como um agrupamento uniforme. Para eles, princípios fulcrais de um Estado democrático, como a independência e a separação entre os poderes, são vistos justamente como uma disfunção da democracia e um mecanismo que inibe a realização da vontade do “povo”, pois não permitem que o “Führer-príncipe” eleito pela maioria, seja absoluto e governe submetendo à minoria às botas da vontade da maioria.[10]

As estremas que os direitos e as garantias fundamentais estabelecem em favor da dignidade da pessoa são retratados como fraquezas injustificáveis do Estado ou como imposições elitistas afrontosas aos sentimentos da maioria. Assim, a democracia e as suas regras se tornam objeto de menoscabo e de rejeição. Os ataques ganham vulto, de modo que nem sempre são perceptíveis. Com essa evolução, o perigo culmina no ponto em que a democracia cede ao autoritarismo e com o consentimento de uma maioria manipulada. Por isso, não é surpresa que as arremetidas populistas costumem se dirigir especialmente em face do sistema eleitoral e às instituições contramajoritárias de Estado. O discurso de ódio e as fake news são instrumentos para populismo, que contribuem para que o cidadão assuma posturas emocionalmente desproporcionais em conflitos superdimensionados e orquestrados por grupos políticos de orientação autoritária.

Lembremos que a desconfiança no Judiciário e no sistema eleitoral, insuflada por esses agrupamentos não republicanos, resultou no lamentável episódio de oito de janeiro. Se a democracia brasileira não tivesse oferecido resistência que salvaguardasse a ela própria, parcela da população teria concretizado o espírito golpista que pairava sobre a capital federal. Isso porque foi instigada a crer que, a “vontade do povo” legitimada nas urnas, havia sido fraudada e tolhida pelo STF e pelo TSE.[11]

A partir daí, os ataques da retórica radical aos direitos fundamentais são frequentes. Um exemplo disso é a indisposição crescente contra medidas de parcimônia que o devido processo legal impõe, especialmente na seara criminal. Esse é outro viés do discurso populista, que tenta minar o prestígio e a confiança no regime democrático. As instituições de defesa de valores do constitucionalismo estão invariavelmente na mira dos arroubos populistas, pois são as guardiãs dos direitos fundamentais e da própria democracia, sendo obstáculos ao triunfo do autoritarismo.

O populismo ainda tende a desmoralização das instituições, flertando com medidas de supressão e enfraquecimento de competências. São exemplos disso as propostas que visam contrapor a eficácia das decisões do Supremo, invocado a legitimidade dos demais poderes – por serem os representantes políticos eleitos -, bem como o debate sobredito quanto à implementação de mandato aos Ministros do Tribunal. Que são medidas claras de degeneração da democracia brasileira. Sempre que a pauta populista é contraditada nos Tribunais, se aventa a hipótese de estabelecimento dos mandatos e o incremento numérico na composição, além de investidas diretas e estímulos a atos viciosos contra os integrantes da Corte. Nada mais são do que tentativas claras de alteração das regras do jogo para impedir que decisões que desagradam produzam os seus efeitos.

Portanto, é justificável que hajam medidas pontuais a cada um desses ataques, a fim de prevenir que os mecanismos de proteção da convivência civilizada e democrática sejam abalados. Dentre essas, algumas estão previstas no próprio texto constitucional, como por exemplo a proibição de deliberação legislativa de proposta de emenda à Constituição, que tenda a abolir o sistema democrático e a separação de poderes. Por isso, importa que as garantias fundamentais sejam observadas e que haja instituições sólidas, atuantes, vigilantes e independentes. Passa pela posição firme desses órgãos o comprometimento com o constitucionalismo e os valores democráticos.

É cediço que as instituições não são imunes ao risco de excessos na proteção desses valores, o que poderia levar a um efeito contrário do que se pretende, quando se limitam as liberdades dos intolerantes para a proteção de um bem maior: a convivência democrática. Contudo essas medidas não são bastante para se rejeitar o grupo de mecanismos extraordinários de defesa da democracia. O preço de tolerar o intolerante sempre será mais custoso, afinal de contas o perigo e o risco são inerentes à existência.

 

Luis Ricardo Saavedra, Advogado, Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), Pós-Graduado em Direito Constitucional pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), Pesquisador do GConst/UFSC (Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina) e Membro das Comissões de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da OAB/SC.

Referências

[1] O acentuado protagonismo do Judiciário vem despertando, não só no Brasil, um conjunto de pesquisas que buscam a explicação desse fenômeno. Nesse sentido, a formação de uma “juristocracia” […] não pode ser analisada como uma consequência exclusiva da vontade de poder (no sentido da Wille zur Macht, de Nietzsche) manifestada pelos juízes, mas, ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração a intrincada relação interinstitucional entre os três poderes. Em síntese, todas essas questões apontam para um acentuado protagonismo do Judiciário no contexto político atual. Indo mais fundo, nos termos propostos Ran Hirschl (Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism), pode-se dizer […] que nosso grau de judicialização atingiu a mega política (ou, a política pura, como o autor gosta de mencionar). Por certo que este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, no cenário mundial. O próprio Hirschl apresenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o caráter federativo do Canadá. (STRECK, Lenio Luiz. O ativismo judicial existe ou é imaginação de alguns? Senso Incomum. 13/06/2013. Conjur. Disponível em: <​​https://www.conjur.com.br/2013-jun-13/senso-incomum-ativismo-existe-ou-imaginacao-alguns>.

[2] A função do Tribunal permanecia a de órgão de cúpula do Poder Judiciário, resolvendo as controvérsias concretas que lhe eram submetidas pelas partes. Prova disso é o rol de competências previsto no artigo 102 da Constituição Federal, que majoritariamente contempla atribuições típicas de um órgão judiciário. […] Esse novo padrão de atuação fez com que a doutrina mitigasse a afirmação tradicional de que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. (HORBACH, Carlos Bastide. É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal. Observatório Constitucional. 22/03/2014. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal>.

[3] André Ramos Tavares, por exemplo, afirma que o Supremo é o “órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, exercendo, em tempo parcial, as funções próprias de um tribunal constitucional, já que também desempenha as funções de tribunal comum, resolvendo litígios concretos”. Tal análise é a projeção, na doutrina, do fato de que o STF se autoproclama como o Tribunal Constitucional brasileiro, como a Corte Constitucional a guardar o texto de 1988. […]. É sabido que um dos traços próprios dos tribunais constitucionais é sua autonomia. Kelsen registra que o órgão encarregado de exercer a jurisdição constitucional deve ser independente de “qualquer outra autoridade estatal”, inclusive do Poder Judiciário. Esse aspecto da construção teórica do modelo de tribunal constitucional fica claro na seguinte análise de Roger Stiefelmann Leal: “A primeira característica básica dos Tribunais Constitucionais reside na sua própria autonomia em relação aos demais poderes do Estado. (…) O Tribunal Constitucional deve, portanto, compor uma magistratura independente do aparato jurisdicional ordinário e das estruturas dos demais poderes. Nesse sentido, configura um poder autônomo, distinto e organicamente independente do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. É este, segundo Favoreu, o atributo que diferencia um Tribunal Constitucional de um Tribunal Supremo de última instância”. […] Nesse contexto, é possível afirmar que, do ponto de vista de modelos ideais, há uma indefinição na atuação do STF, cujo perfil institucional varia, conforme a oportunidade, entre o Tribunal Constitucional e o “órgão de cúpula do Poder Judiciário”. E nessa indefinição, as discussões acerca do aprimoramento do modelo brasileiro de controle de constitucionalidade ganham relevo, como adquirem dimensão as propostas de emenda à Constituição que revisam do papel do STF; em debate que necessariamente acrescentará um ponto de interrogação à frase que abre este artigo: o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário? (HORBACH, Carlos Bastide. É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal. Observatório Constitucional. 22/03/2014. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal>.

[4] O Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – ou, simplesmente, o Partido Nazista – chegou ao poder pelo voto popular. Oriundo de um movimento nacionalista totalitário de convicções antissemitas, o Partido Nazista, após obter relativo sucesso em eleições parlamentares na década de 1920, alcançou o seu ápice eleitoral na década seguinte, sendo alçado à chefia do Poder Executivo em 1933 pelas vias constitucionais adequadas – sem promover qualquer espécie de tomada de poder pela força – quando o então Presidente da República de Weimar, Paul von Hindenburg, nomeou Adolf Hitler para o cargo de chanceler da Alemanha. No ano seguinte, com a morte do então Presidente von Hindenburg, foi imediatamente promovida a unificação dos cargos de presidente da República e de chanceler da Alemanha na figura única do Führer, tendo então o líder do Partido Nazista assumido os poderes inerentes à chefia de Estado e ao comando supremo das forças armadas. De acordo com a análise da pensadora alemã Hannah Arendt, “a ascensão de Hitler ao poder foi legal dentro do sistema majoritário, e ele não poderia ter mantido a liderança de tão grande população […] se não tivesse contado com a confiança das massas”. (RÊGO, Eduardo de Carvalho. Superpoder Judiciário: O papel do controle de constitucionalidade na consolidação da juristocracia no Brasil. Tese (Doutorado) – UFSC, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2018).

[5] É na democracia de militância que se podem encontrar as origens teóricas da democracia defensiva. O grande expoente da teoria da democracia de militância foi o constitucionalista alemão Loewenstein (1937), que defendia que não deveriam sequer participar da competição política os partidos políticos que não se coadunassem com o regime democrático. […] A preocupação de Loewenstein à época – hoje se percebe que ela se mostrou extremamente pertinente – era de que a participação de partidos políticos com evidentes características totalitárias poderia levar à derrocada do próprio regime democrático. Nesse ponto, vale salientar que Hitler não alcançou o poder em virtude de um golpe de Estado ou de maneira violenta, mas por meio do Partido Nacional-Socialista; ele participou da disputa democrática, alçado ao cargo de líder (führer) com o apoio majoritário da população alemã. Contudo, deve-se reconhecer que, desde o início de sua campanha eleitoral, já expunha idéias totalitárias e dava sinais de que não respeitaria as regras democráticas. Por esse motivo, Loewenstein defendia que o partido nazista não poderia sequer participar do processo democrático. As premissas da democracia militante, portanto, eram a de que o regime democrático deveria contar com mecanismos (ainda que antidemocráticos) para evitar que agentes políticos com ideais totalitários de poder, tais como Hitler, utilizassem instrumentos democráticos para chegar ao poder. Assim, deveriam ser criados meios para que a democracia se defendesse dos partidos que buscassem alçar-se ao poder para destruí-la. Isso porque o fascismo, classificado por Loewenstein (1937) como uma técnica política, só conseguiria ser vitorioso em razão das condições favoráveis oferecidas pelas instituições democráticas, em especial em virtude da tolerância democrática. (FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133).

[6] Democracy was unable to forbid the enemies of its very existence the use of democratic instrumentalities. Until very recently, democratic fundamentalism and legalistic blindness were unwilling to realize that the mechanism of democracy is the Trojan horse by which the enemy enters the city. To fascism in the guise of a legally recognized political party were accorded all the opportunities of democratic institutions. (LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, I. The American Political Science Review, [s. l.], v. 31, n. 3, p. 417-432, June 1937. DOI: https://doi.org/10.2307/1948164).

[7] Com base na teoria da democracia militante, partidos políticos com objetivos antidemocráticos deveriam ter o seu registro negado ou cassado, em nome da defesa do próprio regime democrático. A necessidade de uma democracia militante, portanto, surge do imperativo de autoproteção e autopreservação da democracia (LOEWENSTEIN, 1937, p. 429). […] Com isso, percebe-se que a característica principal da democracia – a tolerância – pode ser igualmente a razão de sua derrocada. A tolerância, ao mesmo tempo em que permite que a democracia sobreviva, é o seu ponto fraco; essa é a verdadeira aporia da democracia. Afinal, a democracia tem como fundamento básico o respeito à diferença de ideias, ao pluralismo político, à liberdade de expressão, que são justamente os meios de que partidos autocráticos se podem valer para chegar ao poder e destruir o regime democrático. Por essas razões, para que a democracia possa sobreviver, é imprescindível que mecanismos sejam criados no ambiente democrático a fim de restringir a liberdade de grupos ou atores políticos que, por meio de ideias totalitárias ou intolerantes, ameacem a própria democracia. Nesse ponto, percebe-se que as ideias de Loewenstein e de Popper se aproximam no sentido de defender a necessidade de exclusão de certos grupos políticos como forma de sobrevivência da democracia. De uma maneira objetiva, pode-se concluir que a lógica tanto da democracia militante quanto do paradoxo da tolerância é no sentido de que a democracia não pode transformar-se num pacto suicida, razão pela qual devem ser garantidos mecanismos para a legítima defesa da ordem democrática. […] (FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133).

[8] Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana […].

[9] ABBOUD, Georges. O Supremo é o povo? 24/10/2023. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/10/o-supremo-e-o-povo.shtml>.

[10] O próprio conceito de democracia é ambíguo para o cidadão comum. Neste sentido, muito embora as explicações recentes sobre o retrocesso democrático se concentrem em duas classes de eleitores especialmente, quais sejam, os autocratas, que simplesmente preferem um sistema de governo não e os militantes, que conscientemente sacrificam seus princípios democráticos em busca de objetivos partidários, não se pode negligenciar um terceiro tipo: os majoritários, ou aqueles que concedem ilimitada licença a titulares eleitos pelo povo, por acharem que isso seria o verdadeiro significado de democracia. Assim, os majoritários consideram o princípio democrático preeminente: que os candidatos eleitos pela maioria devem governar de maneira ilimitada, mesmo que isso acabe minando as instituições democráticas. Desta forma, para os majoritários, um titular eleito pelo povo exerce o poder democraticamente por definição, de modo que a atuação contramajoritária seria, para essa parcela da população, antidemocrática. Tem-se aí, pois, a justificativa do álibi retórico para transformar a Corte Constitucional em inimigo ficcional: uma suposta defesa da “verdadeira democracia”. […] Assim, a ameaça populista é a instrumentalização do populismo em nome de ideologias extremas para atacar as instituições existentes, tanto formais quanto informais. O populismo não é exclusivo das democracias nem é uma ideologia tradicional de esquerda-direita, caracterizando-se, pois, como uma forma de retórica que tenta persuadir opondo alguma visão do povo virtuoso e seu defensor contra uma elite corrupta. No Brasil, temos que o uso estratégico da polarização, da retórica populista e o ataque à Corte Constitucional como estratégia política. Esse discurso populista serviu para vincular e dar voz a uma série de demandas populares, insatisfeitas com a política tradicional. (ABBOUD, Georges. Intimidação das Cortes Constitucionais para enfraquecer a democracia. 03/11/2022. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-nov-03/abboude-rodrigues-jr-intimidacao-cortes-constitucionais>.

[11] Em 8 de janeiro, vivenciamos o dia da infâmia em virtude dos ataques golpistas praticados na praça dos Três Poderes contra as instituições democráticas brasileiras. É crucial que a esfera do debate público nacional compreenda que o movimento advém, em grande parte, de um discurso extremado, recheado de fake news, que objetiva transformar a Suprema Corte em inimigo ficcional da sociedade brasileira. O Supremo Tribunal Federal não é um órgão político, mas sim um órgão jurídico e técnico, que é demandado para resolver, juridicamente, questões políticas (e se para isso for provocado), conforme clássica lição de Dieter Grimm. Nesse contexto de exacerbada judicialização da política, a desinformação e os ataques ao STF não são fruto apenas da ignorância das pessoas acerca da real atuação da corte. Pelo contrário, há um agir estratégico e golpista que fomenta essa ofensiva contra o Judiciário. Trata-se na realidade de uma ferramenta típica de regimes e movimentos autoritários que fustigam as democracias. […] O clichê populista mais usado consiste em acusar a Suprema Corte de ter um viés político incontornável, de estar compromissada com as pautas progressistas e com o politicamente correto. Esse argumento gera, como vimos aqui no Brasil, ressentimento cultural e religioso em parcela significativa da população, que passa a enxergá-la como moralmente corrupta e perigosa. A turba que atacou a democracia no dia 8 foi convencida de que a família tradicional estaria em risco diante de uma pretensa ameaça comunista iminente. Esses pseudoargumentos são tratados como palavras de ordem, na ignorância de que a jurisdição constitucional deve exercer uma função de controle, correção e até mesmo de supressão de determinadas omissões inconstitucionais dos demais Poderes. Essa visão ignora a constante ação do STF na proteção dos direitos fundamentais da sociedade brasileira como salvaguardas da democracia. (MENDES, Gilmar Ferreira. ABBOUD, Georges. O dia da infâmia: os ataques golpistas de 8/1 e as fake news contra o Supremo. 22/01/2023. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/gilmar-mendes-georges-abboud-81-dia-infamia>.